sábado, 14 de julho de 2012

Matagal


Nessa época eu estava morando sozinho. Minha família tinha recém voltado pra Minas e eu tinha acabado de me separar da minha mulher. Estava endividado até as orelhas porque tinha tido que alugar uma nova casa e recomprar quase todos os móveis e utensílios domésticos.
Eu estava tão desmotivado, tão deprimido e apartado do mundo que a louça foi acumulando-se na pia até o ponto em que o armário estava completamente vazio e eu só lavava o que precisava usar quando precisasse. Eu chegava do trabalho, comia alguma coisa, assistia um filme e passava umas oito horas tocando violão. Depois dormia no sofá da sala e quase de manhã ia pra cama. Depois ia pro trabalho, fazia o que tinha de fazer e voltava pra casa no fim do dia, começar tudo de novo. As coisas iam acontecendo à minha volta, sem que eu participasse delas. Sem que eu tomasse qualquer decisão.

Os dias iam passando, eu deixava que eles passassem. E só.

Foi então que a vizinha chata da casa da direita me denunciou pra vigilância sanitária porque meu quintal tinha tanto mato que estava invadindo o dela e - num dia qualquer - apareceu um funcionário da prefeitura pra capinar aquilo tudo.
O homem tinha uns 45 anos de idade, um ar caipira e triste, as roupas meio sujas e umas cicatrizes grandes no rosto. Enquanto ele fazia seu trabalho eu preparava o almoço e íamos conversando. Contei que era mineiro, que adorava pimenta e ele disse que também gostava muito. Dei pra ele algumas que tinha na geladeira e o homem retribuiu me presenteando com um molho de malagueta e alho que ele mesmo tinha preparado e carregava na mochila.
Experimentei o molho – que era absurdamente bom – elogiei e o cara me contou que o tinha preparado pouco antes de sair da cadeia. Perguntei porque tinha sido preso e ele disse que, certa noite, numa festa lá em sua terra natal, sua esposa bêbada tinha trocado olhares com outro homem, que sentiu-se confiante para investir, ainda que soubesse que a mulher era casada.
Segundo o cara, ele e a esposa não vinham bem há algum tempo, mas ele gostava dela e estava fazendo o possível pra manter a relação nos trilhos e tê-la a seu lado. "Mas uma mulher insatisfeita é um bicho difícil de se domar." E naquela festa, talvez pra sentir-se querida, talvez pra causar ciúmes ou talvez pra deixar claro que já não se sentia mais envolvida pela marido, ela resolveu flertar com este outro homem. Mas os homens têm sempre um sentimento de posse muito forte em relação às suas mulheres. Sentimento difícil de conter, ainda mais quando se sente algum carinho ou apego pela mulher em questão. E daí o marido sacou uma faca que carregava sempre consigo e esfaqueou o homem. Três vezes. No abdôme.

O marido também estava muito bêbado, de modo que sua agressão não foi fatal o suficiente pra matar o outro. Mas foi fatal o suficiente pra que ele fosse condenado a três anos de cadeia. E esses três anos foram suficientes pra que sua esposa deixasse de sentir-se esposa e recomeçasse a vida em outra cidade, com outro homem.
O marido, que agora não era mais marido de ninguém, saiu da cadeia sem nada. Sem casa, mulher, emprego. E às duras penas vinha tentando recomeçar as coisas. Refazer-se depois da destruição que aquele amor tinha lhe causado. Reaver a vida que tinha sido levada com a mulher com quem tinha dividido os dias. Recomeçar, depois que ela tinha acabado com tudo.

Depois de terminar a história e depois de terminar o trabalho o homem foi embora. O quintal estava limpo. A casa parecia ter recuperado um pouco da civilidade, um pouco do equilíbrio, um pouco de organização.
Eu tinha perdido um amor, minha família estava longe eu estava quase sem dinheiro. Mas ainda tinha meu trabalho, tinha minha casa e uma porção de planos pra colocar em prática. Aquele cara tinha ido pra cadeia e perdido tudo, mas estava ali, tentando superar as perdas e correr atrás do prejuízo. Ele tinha perdido mais que eu e ainda tinha esperanças de recuperar. Eu precisava deixar de ser bundão, acabar com o matagal que tinha se tornado minha vida e continuar caminhando pra fazer com que as coisas dessem certo.